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Fernanda F. D’Agostini • 11/06/2024

O Legado Urbano na Emergência Climática

Introdução

O legado urbano na emergência climática tem se revelado um dos grandes desafios das cidades contemporâneas. Decisões tomadas no passado, muitas vezes sem considerar os impactos ambientais e sociais de longo prazo, contribuíram para intensificar eventos extremos como enchentes, deslizamentos e ondas de calor. Diante desse cenário, é urgente refletir sobre como os modelos de urbanização moldaram as vulnerabilidades atuais e como o planejamento urbano pode – e deve – ser um instrumento essencial de adaptação e mitigação frente à crise climática.

O ano de 2024, como muitos outros, foi marcado por eventos climáticos que geraram desastres naturais, impactando profundamente nossos territórios. Cidades tomadas pelas águas são um grito de urgência do meio ambiente. Eventos de grande escala, como os ocorridos no Rio Grande do Sul, são difíceis de prever e ainda mais desafiadores de evitar. No entanto, é possível trabalhar nossas cidades para que, ao nos depararmos com situações climáticas dessa magnitude, o território possa absorver os impactos e mitigar os danos da melhor forma possível.

Este artigo não pretende discutir especificamente os eventos no Rio Grande do Sul, nem buscar culpados. Em vez disso, busca analisar como o legado urbano – as decisões políticas e econômicas tomadas durante os principais períodos de expansão urbana, contribuíram para a emergência climática e o que podemos aprender para moldar decisões futuras.

A História das Decisões Urbanas e suas consequências ambientais

Para entender a situação atual das nossas cidades, precisamos revisitar a história e compreender como as decisões passadas influenciaram fortemente o desenho urbano que temos hoje. Esse legado urbano moldou os problemas ambientais que enfrentamos, como enchentes, alagamentos e ilhas de calor decorrentes da emergência climática global.

No final do século XIX e início do século XX, muitas cidades brasileiras se desenvolveram em torno das estações ferroviárias. A maior parte dos trajetos ferroviários foi construída nas várzeas dos rios, onde o terreno é mais plano e o acesso é mais fácil. A ocupação dessas várzeas trouxe sérias consequências ambientais. As várzeas, naturalmente alagáveis, funcionam como zonas de amortecimento para o excesso de água durante períodos de chuva intensa. A urbanização dessas áreas reduziu significativamente a capacidade de absorção da água da chuva, resultando em enchentes e alagamentos.

Entre 1920 e 1930, São Paulo enfrentou uma rápida urbanização e industrialização. Francisco Prestes Maia, engenheiro e urbanista, elaborou o Plano de Avenidas em 1930 para enfrentar os desafios de infraestrutura decorrentes do crescimento populacional e do aumento do número de veículos. Uma das principais intervenções foi a canalização dos rios Tietê e Pinheiros, transformando-os em canais controláveis com marginais projetadas para acomodar grandes avenidas. Essas alterações físicas nos rios tiveram efeitos hidrológicos e ambientais significativos, exacerbando os problemas de enchentes a jusante e degradando a qualidade da água devido à poluição industrial e doméstica.

Além disso, o Plano de Avenidas incluiu a canalização e cobertura dos rios Itororó e Saracura para a construção das Avenidas 23 de Maio e 9 de Julho. Essas intervenções reduziram a capacidade de absorção de água, aumentaram a poluição dos cursos d’água e resultaram na perda de biodiversidade, eliminando habitats naturais.

Nas décadas de 1950 e 1960, as políticas públicas de Juscelino Kubitschek (JK) também impactaram o desenvolvimento urbano de São Paulo. O Plano de Metas de JK incentivou a industrialização e modernização do país, aumentando a demanda por infraestrutura urbana e transporte em São Paulo. A rápida industrialização e urbanização reforçaram a importância do Plano de Avenidas de Prestes Maia. Investimentos em infraestrutura, incluindo estradas e energia elétrica, facilitaram a implementação dos projetos viários.

As políticas de urbanização e industrialização, apesar de promoverem o desenvolvimento econômico e a modernização, ignoraram as questões ambientais. A retificação e canalização de rios e a impermeabilização das várzeas eliminaram os serviços ecossistêmicos fornecidos por essas áreas, como a filtragem de poluentes, a regulação do microclima e a oferta de habitats para a fauna local. Essas ações contribuíram para a formação de ilhas de calor urbanas, aumentaram o risco de enchentes e comprometeram a qualidade da água e a biodiversidade, consolidando o legado urbano na emergência climática que vivemos agora.

Repensando a cidade pelos conceitos de Cidade-Jardim e Cidade-Esponja

Para entender alternativas ao modelo de urbanização que contribuiu para os problemas ambientais, é útil explorar o conceito de cidade-jardim. Introduzido por Ebenezer Howard em seu livro “Garden Cities of To-Morrow” (1902), o conceito de cidade-jardim visava criar comunidades planejadas que combinassem os benefícios da vida urbana e rural. Howard propôs a criação de cidades de tamanho moderado, cercadas por cinturões verdes e conectadas por uma eficiente infraestrutura de transporte. O objetivo era descentralizar a população das grandes cidades industriais e redistribuí-la em novas cidades bem planejadas, com espaços verdes abundantes e ambientes de vida saudáveis.

Letchworth Garden City, fundada em 1903, e Welwyn Garden City, fundada em 1920, são exemplos emblemáticos desse conceito na Inglaterra. Howard usou a metáfora do “colar de esmeraldas” para descrever a rede de cidades-jardins interligadas por cinturões verdes, cada “esmeralda” representando uma cidade-jardim, enquanto os “colares” eram os cinturões verdes que conectavam e cercavam essas cidades.

O conceito de cidade-esponja é uma abordagem contemporânea que se concentra na gestão da água urbana e na adaptação às mudanças climáticas. Inspirada em práticas sustentáveis e na infraestrutura verde, uma cidade-esponja é projetada para absorver, armazenar, filtrar e reutilizar a água da chuva, minimizando o escoamento superficial e reduzindo o risco de inundações. Elementos comuns em uma cidade-esponja incluem telhados verdes, pavimentos permeáveis, jardins de chuva e parques inundáveis. Essas infraestruturas imitam os processos naturais de gestão da água, promovendo a infiltração e retenção de água e reduzindo a pressão sobre os sistemas de drenagem urbana.

Embora os conceitos de cidade-esponja e cidade-jardim tenham diferentes focos e tenham sido desenvolvidos em épocas distintas para resolver problemas urbanos variados, ambos compartilham a visão de integrar natureza e infraestrutura urbana de maneira sustentável. A cidade-jardim enfatiza o equilíbrio entre o urbano e o rural para melhorar a qualidade de vida, enquanto a cidade-esponja se concentra na gestão da água e na adaptação às mudanças climáticas para criar cidades mais resilientes. Em conjunto, esses conceitos podem se complementar no desenvolvimento de cidades mais sustentáveis e habitáveis.

Para mitigar os impactos das mudanças climáticas e criar cidades mais resilientes, é necessário repensar a forma de construção das nossas cidades, integrando o meio natural nos tecidos urbanos. A adoção de conceitos como a cidade-esponja e a cidade-jardim pode ser um caminho promissor. Telhados verdes, pavimentos permeáveis, jardins de chuva e parques inundáveis são algumas das soluções que ajudam a gerenciar a água de maneira sustentável e a melhorar a resiliência urbana.

Considerações Finais

As decisões políticas e econômicas passadas, exemplificadas pelos planos de urbanização de Prestes Maia e Juscelino Kubitschek, desempenharam um papel significativo na criação dos desafios ambientais atuais. A gestão desses impactos requer um esforço contínuo para promover a sustentabilidade urbana e mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Repensar nossas cidades e adotar soluções inovadoras e sustentáveis são passos cruciais para enfrentar a emergência climática e garantir um futuro habitável e saudável para todos.

É necessário repensar a forma de construção das nossas cidades, entender que precisamos trazer o meio natural para dentro dos tecidos urbanos e que é possível ter o equilíbrio entre cidade e meio ambiente. Pequenas ações, como a implantação de infraestrutura verde, são um passo na direção certa. Junto a isso, destaca-se a importância de uma integração entre as políticas públicas para que novas construções sejam mais sustentáveis e as construções mais antigas tenham incentivo para também se adaptarem, incorporando áreas verdes e outras soluções que contribuem para a melhoria da cidade.

Áreas vegetadas, especialmente arborizadas, ajudam a diminuir as ilhas de calor, um problema que afeta os moradores de centros urbanos densamente povoados. Todos podemos contribuir, por exemplo, mantendo espaços permeáveis dentro dos lotes. Cada vez mais, observa-se a falta de áreas ajardinadas nos lotes urbanos.

Além disso, é crucial refletir sobre as políticas públicas habitacionais que incentivam a construção de grandes conjuntos sem considerar a criação de áreas verdes e de lazer para os moradores, resultando em grandes ilhas de concreto que contribuem para a impermeabilização do solo, formação de ilhas de calor e falta de qualidade de vida.

Conclui-se que as políticas de urbanização e industrialização de Prestes Maia e Juscelino Kubitschek, embora tenham contribuído significativamente para o desenvolvimento econômico e a modernização de São Paulo, também desempenharam um papel na criação de um legado urbano que estão no cerne da emergência climática atual. A gestão desses impactos requer um esforço contínuo e integrado para promover a sustentabilidade urbana e mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

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Autor

  • Certificada PMI® PMP® em gestão de projetos, consultora em gestão de projetos para implementação de processos para maior produtividade e engajamento da equipe, possui larga experiência na elaboração e execução de projetos residenciais, comerciais e institucionais, atua no mercado de trabalho desde 2001 e como docente no ensino superior há mais de 10 anos. Doutora (2019) e Mestre (2014) em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Arquiteta e Urbanista formada pela Universidade São Judas (2000) e especialista em Criação Visual e Multimídia pela mesma universidade (2003).

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